terça-feira, abril 18, 2006

Escritor de sonhos

Naquele chão de tábua corrida, gemem passos arrastados como se o afagassem no carinho da memória de tantas primaveras já partilhadas. Demora mas chega ao sofá que, moldado a si, lhe sorri num convite a mais umas horas de viagens no silêncio. Recorda que sem sair dali já foi a todos esses sítios que nunca viu e ainda assim jamais esquecerá a que cheiram, a que sabem, que gentes há em cada chão, que esquinas emolduram cada horizonte e que pedaços de si deixou repousar em cada um deles.
Mas desta vez será diferente, desta vez será a sua. Dirá tudo o que não disse e fará tudo o que não fez, esculpirá a vida como a vê e pintá-la-á apenas das cores que crê ter. Num instante escapam-lhe os olhos cansados para a janela, recosta-se e com a lentidão a que gira agora o seu mundo deixa-se levar… Encontra quem nunca chegou a conhecer e desta vez dá-lhe nome de élfica bailarina do ar. Floresce na sua face pequenas sardas atrevidas, molda nas suas pernas finos copos de cristal e no seu peito simétricas colinas de um alvo cetim. Compõe a musicalidade da sua cintura com as notas da sua doce voz e por um só momento parece pairar para ele, suspensa por invisíveis fios de uma sublime teia que tece em sitio nenhum. Essa mesma silhueta chama-o agora numa língua que não entende e sem receio ou arrependimento salta ao seu encontro. Mas desta vez será diferente, desta vez fá-lo para nunca mais voltar.

5 Comments:

Blogger (in)confessada said...

sabe tão bem vir aqui...

quarta-feira, 19 abril, 2006  
Anonymous Anónimo said...

É curiosa a imagem da teia onde a aranha-bailarina é uma auto marioneta capaz de uma sedução letal.
O teu Sonhador lembra-me A Morte em Veneza do Thomas Mann onde o escritor Aschenbach (na realidade o compositor Gustav Maler por um lado e Wagner por outro), conforme dizia, acabaria por sucumbir aos sentidos perante a beleza (hoje cada vez mais tabu) de um tal Tadzio...
Os Sentidos são já desde a Consciência Védica (vide Bagavagita), como que meras ilusões geradoras de auto destruição. O psicanalista W. Bion dizia que nós acabamos por morrer de conflitos que não conseguimos transformar e que (digo eu), muito ardilosamente nos desculpmos com a ideia consubstanciada no alibi dos "feitios de cada um", feitios esses pressupostamente imutáveis; a propósito:
Será que o Analfabetismo e a Iliteracia também são feitios? (ela canta a pobre ceifeira julgando-se feliz talvez.....F.P.).
Para mim (à parte a maquiavélica autocracia Consumista), tudo se passa como se a Real confusão entre a teia e o próprio Amor fosse referido apenas a Valores Puritanos e não a Valores Eternos catalizadores da nossa Existência e Realização Pessoal.
É pena que esta visão sobre o Amor possa ser facilmente associada ao Orgulho de alguns Neo Fariseus, provavelmente onde eu me possa incluir (Bem prega Frei Tomás...). De resto escreveste um texto com belas imagens bastante poéticas como esquinas a emoldurar horizontes e outras.
Depois é a encantadora sabedoria do teu Sonhador que não precisa de se mobilizar fisicamente para saber.
Provavelmente basta-lhe Sonhar para chegar ao Amor e isso é o Auge da Sabedoria porque o Amor vive muito simplesmente dentro de nós que como moscas intentamos em sair pelo lado mais difícil de cada garrafa destapada.
Qualquer semelhança entre estas coisas de vidro e o corpo de uma mulher é pura coincidência ... (o Vitorino de Almeida é que se lixou quando decidiu meter a intocável Coca Cola ao barulho em "Coca Cola Killer"... mas isso já lá vai...)

Ti Carlos (xempre atento) :)

quinta-feira, 20 abril, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Fiquei presa no teu Blog e agora não consigo sair mas tambem não sei se quero! Diz-me o teu nome e deixa-me ficar.


Marta Campos

sexta-feira, 21 abril, 2006  
Blogger Um_palhaço_triste said...

Obrigado. Que esta prisão te liberte!
Saber o meu nome não muda o que escrevo... o nome não é importante!

terça-feira, 25 abril, 2006  
Blogger mara said...

Que saudades de ouvir essas palavras na tua voz!!Adorei...Beijos de quem tem tanto de ti!

quarta-feira, 26 abril, 2006  

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