terça-feira, agosto 22, 2006

Memória de um soldado

Marchavam os teus soldados negros... descompassados... Dos seus corpos exauridos chovia essa dor que secava a alma quando vi teu pai. Entregou-me a única coisa que podia: aquele abraço impotente e fraco de quem implodiu com o peso do mundo no peito, e foi então que entendi que nos tinhas condenado a todos. Ficaríamos presos por ti para sempre, e ao mesmo tempo aquele sítio passaria a ser lugar nenhum para todos nós, para os que ficámos juntos nesta solidão que nos impuseste por seres um filho do tempo que passa para ficar e não do tempo que passa por passar.
Em redor daquela tua imagem, que tua mãe pensava agarrar com a força que na verdade já não tinha, embatiam os silêncios de água e sal de quem não te pôde salvar de ti próprio e de tudo o que não se pôde ter de ti. Os nossos olhares queimavam os alheios ao se cruzar impelindo na fuga a perdê-los de seguida para aquela mesma calçada… Foi então que a vi pela primeira vez… Trazia o passo certo debaixo da saia negra e as mãos rígidas no equilíbrio inabalável da sua figura. Detrás de um véu olhou ora um ora outro mas a todos, e viu-nos por dentro como se quisesse afirmar que podia… um por um sem compaixão. Aquele olhar que não reagia nunca mas magoava, revoltava e ao mesmo tempo era estranhamente pacífico e vazio, ficou gravado a ferro em brasa no último capítulo da minha memória de ti. Ninguém ousou perguntar-lhe o que quer que fosse, nem eu, pois todos a conhecíamos e nela tudo fazia sentido pela obsidiante força da nossa impotência. Ela levara-te para longe de nós deixando regorgitadas nessa azeda terra que te teve, te consumiu, te tem e te terá para sempre, todas as flores de um estio que viria a ser longo demais.
Queria apenas que soubesses que ainda me perseguem todos os espaços que foram teus e que os dias me parecem ainda mornos de ti como se não tivesses partido, como se ainda esperassem por ti nessa estranha luz coada da tua ausência.

1 Comments:

Blogger mara said...

Tão cruel, tão pesado!É raiva ou respeito o que tens por essa morte de saia preta? "Silêncios de água"... uma vez li que a água tem memória! Se de facto tiver; que um dia me deixe beber o que foi dito nesses pensamentos sem voz! Um enorme beijo
P.S. I miss him too!!

sábado, 18 novembro, 2006  

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