quarta-feira, abril 16, 2008

O espelho

Lá fora raiava já um pequeno sol de primavera e tudo apontava para que fosse mais um daqueles dias de pequena glória doirada largada de mansinho a conta gotas na terra ainda húmida da noite.
Ainda assim, como todas as outras manhãs, deu um jeito à gravata na real ilusão daquele vidro espelhado à saída de casa. As manhãs sempre pareciam exauri-lo da vitalidade que decerto ainda tinha no seu jovem sangue e talvez por isso se imiscuísse rápido no trânsito como se tentasse por osmose apoderar-se da energia dos outros.
Faz desenhos no vidro embaciado para se assegurar de que está vivo, de que é real, de que há um sentido para a sua existência ali…
Confundem-se os minutos com horas e as estas com dias e de repente mais um acaba. Enfrenta-se de novo no mesmo vidro espelhado e a barba que desponta já assegura-o que de facto o tempo passou e de que tudo talvez seja mesmo real, que talvez exista mesmo só isto, talvez tudo o resto sejam contos de fadas, talvez não acorde nunca porque não há nada de que acordar… talvez então seja melhor adormecer ao som do sonambulismo de todos os outros e deixar-se levar.
E se um dia olhar para trás e nada vir, saberá que foi porque todos os seus dias ficaram presos naquele mesmo espelho à porta de casa...