quinta-feira, abril 27, 2006

Estranhas camas

Conheço a cama onde deitada sei que pensas em mim. Em minha mente deito-me nela também e a teu lado deixamo-nos ficar em silêncio na simples contemplação desse nada só nosso. No medo de perder para sempre o que invisível cresceu plácido ao nosso redor, nem tu nem eu ousamos proferir qualquer das palavras que ainda gritam calmas dentro de nós. Mover-me parece-me agora tão estranho que talvez me tenha esquecido de como se faz, e mesmo que o saiba ainda, sei também que não quero tentar. Não agora que repousa o conforto entre nós, que lá fora o mundo se acalmou nas tormentas dos Homens para nos deixar ali, que tudo ao nosso redor se cristalizou no seu melhor momento para nos encastrar no seu esplendor floral de luz... e assim ficamos, julgando ser esta a nossa eternidade.
Mas talvez não! Lá fora ainda sofre o caótico trânsito da manhã; o sol, que pouco sol revela ainda, queima já no seu arrasto, e em nós pesa inglório o ónus dessa ignóbil vergonha de esticar a mão, de ceder, de ser o primeiro a tentar, de nos engolirmos a nós mesmos, de abdicar. Estamos à distância das nossas cordas vocais, da vontade de nossos pés, de um gesto em nossas mãos, mas orgulhosos e conscientes falhamos... como sempre...
Somos indigentes das nossas verdades e sabêmo-lo! E é por isso que não estamos na mesma cama, que nas camas onde estamos juntos na verdade estamos sós, e que a nossa cama só o poderá ser quando e se ambos assim quisermos.

domingo, abril 23, 2006


















Photo by: Diogo Franco

terça-feira, abril 18, 2006

Escritor de sonhos

Naquele chão de tábua corrida, gemem passos arrastados como se o afagassem no carinho da memória de tantas primaveras já partilhadas. Demora mas chega ao sofá que, moldado a si, lhe sorri num convite a mais umas horas de viagens no silêncio. Recorda que sem sair dali já foi a todos esses sítios que nunca viu e ainda assim jamais esquecerá a que cheiram, a que sabem, que gentes há em cada chão, que esquinas emolduram cada horizonte e que pedaços de si deixou repousar em cada um deles.
Mas desta vez será diferente, desta vez será a sua. Dirá tudo o que não disse e fará tudo o que não fez, esculpirá a vida como a vê e pintá-la-á apenas das cores que crê ter. Num instante escapam-lhe os olhos cansados para a janela, recosta-se e com a lentidão a que gira agora o seu mundo deixa-se levar… Encontra quem nunca chegou a conhecer e desta vez dá-lhe nome de élfica bailarina do ar. Floresce na sua face pequenas sardas atrevidas, molda nas suas pernas finos copos de cristal e no seu peito simétricas colinas de um alvo cetim. Compõe a musicalidade da sua cintura com as notas da sua doce voz e por um só momento parece pairar para ele, suspensa por invisíveis fios de uma sublime teia que tece em sitio nenhum. Essa mesma silhueta chama-o agora numa língua que não entende e sem receio ou arrependimento salta ao seu encontro. Mas desta vez será diferente, desta vez fá-lo para nunca mais voltar.

quarta-feira, abril 12, 2006

A dor de saber

Para lá das portas de minha alma escrevi em etéreos pedaços de nada o teu nome a ferro e fogo para que não esquecesse jamais de me lembrar… para não te repetir. Gastei neles uma parte de mim, aquela que libertei, e carreguei no meu latim todas aquelas palavras que dizes não terem sido para ti mais que redundantes e ininteligíveis delírios meus. Negas-me perante ti e deixo, mas não esqueço e não descanso desta gasta desilusão!
Guardo na dor da pele ferida por este auto-flagelado fogo que juro sentir frio, a memória de como te senti um dia estóico pilar de algo alvo e maior, leveza de um outro dia de vítreo sol, perene embriaguez das nossas ondas… mas terás mudado ou ter-te-ei visto pela primeira vez?!
Sei que agora em todas as manhãs substituis as tuas fátuas máscaras na real ilusão daquele vidro espelhado à saída de casa. Sei que as sentes gastas de ti, mas ainda assim fraquejas na negação dessa inércia morna que te habita e deixas-te exaurir da fraca vitalidade que decerto ainda tens no teu jovem sangue. Sei que por isso te imiscuis rápida no trânsito dos passeios como se tentasses por osmose apoderar-te da energia dos outros mas sentes-te só e diferente… e és agora apenas uma mais!
Mas quando um dia descobrirem que és um logro? Que não és quem julgam seres e não pertences a lugar algum? Que não és nem sol nem neve, nem serra nem mar; que és tão somente brisa carregada e leve, sem norte ou sul, ora seca ora húmida? Que em ti anoitecem todas as chamas negras do teu lento definhar? Não sei que será de ti mas sei que não és como te vi...

segunda-feira, abril 03, 2006

Palavras de um beijo

Não tivesse eu sido
Mais um anjo caído
Largado em vão

E a vida não fosse
Nem acre nem doce
Sem sal no meu pão

Teria eu pergaminho
De um outro caminho
D’outras pedras do chão?

Outra simples vida
Qual sombra invertida
Desta triste razão?

Ou seria agora
Como fui outrora
A mesma velha canção?

O mesmo corpo despido
Em palavras tecido
Como um beijo na mão...

sábado, abril 01, 2006

Resposta

Na beleza tua que ignoras, emprestaste indolente o dourado às chamas do frio mundo ao qual não pertences e deixaste-te olhar de igual pelas aves que recortavam pedaços daquele céu que, com tuas mãos aladas, tentaste roubar para fazer meu. Mas ter-me-ei deixado dormir?!...
Agora olho ao fundo os dias rasgados do calendário, na esperança de neles ver mais do que os sois que fugindo morreram para não mais nos pertencerem. Abro nas mãos aquela janela, que em sorrisos cheios de luz me habituei a ver-te libertar, mas falha-me o gesto pois não é nem teu nem para ti e já nem olhos pareço ter para estas banais manhãs. Questiono-me porque é que, querendo-te, fujo invariavelmente sem jamais render a minha débil sobranceria perante aquelas tuas verdades com que marcaste, com o teu azul escrito, tantos papéis meus. Porque é que detrás de mim me escondo cheio de mar e céu e fogo e vento e “eu”, escolhendo vestir a mentira de te fazer crer que sou diferente de ti, que sou penumbra de gente, invertebrado impermeável a lágrimas e sentimentos teus. E será que estarei a dormir?!...
Temo-te a grandeza apaixonada e a vida que carregas forte em teu sangue, e assim sigo enganando-te nesta impotência de ser eu perante ti. Mas depois desta cruel dança de jogo de xadrez, que controlo com torres negras, seguirás sem esperança de ver em mim a luz de teus inebriantes desejos?... Virão dias de pequena glória doirada, largados de mansinho a conta gotas na terra, sobre a forma de um sol de Primavera?... Ou será que dormirei já em ti?